A exigência da encarnação

Desde estas linhas tenho várias vezes chamado a atenção para a importância do momento presente que estamos a viver, destacando como nele se estão a forjar os novos paradigmas que irão presidir (em certo sentido já estão mesmo a presidir) às nossas sociedades num futuro próximo.

Daqui decorre, e também isso tenho sublinhado, um desafio ao qual os cristãos e as suas comunidades não podem, de modo nenhum, ser indiferentes, sob pena de não serem fieis à sua identidade e missão. Refiro-me expressamente ao contributo que são chamados a dar na edificação da sociedade e da história.

Para isso é necessário ousar assumir novas atitudes e percorrer novos caminhos como tão bem aparece afirmado no nº 74 da Exortação Evangelii Gaudium:

Torna-se necessária uma evangelização que ilumine os novos modos de se relacionar com Deus, com os outros e com o ambiente, e que suscite os valores fundamentais. É necessário chegar aonde são concebidas as novas histórias e paradigmas, alcançar com a Palavra de Jesus os núcleos mais profundos da alma das cidades.

Novos paradigmas, novas histórias

Não tenhamos dúvidas, temos de estar presentes nos lugares onde a vida acontece e onde se estão a forjar esses novos paradigmas e a contar essas novas histórias. Se não o fizermos a vida acontecerá na mesma, as novas histórias não deixarão de ser contadas e os novos paradigmas continuarão a ser forjados, sem a iluminação da luz do Evangelho que lhes pode abrir novos horizontes.

Para isso, e continuo a recorrer à Evangelii Gaudium, agora no seu nº 167:

É preciso ter a coragem de encontrar os novos sinais, os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as diversas formas de beleza que se manifestam em diferentes âmbitos culturais, incluindo aquelas modalidades não convencionais de beleza que podem ser pouco significativas para os evangelizadores, mas tornaram-se particularmente atraentes para os outros.

Para isso, também, os cristãos têm de encarar a sua presença no espaço público não apenas como uma necessidade prática, mas como algo que se fundamenta e decorre daquilo que o próprio cristianismo é.

Este convívio entre o cristianismo, mais precisamente os cristãos, e aquilo que podemos chamar a laicidade (não laicismo) inerente aos nossos espaços públicos, implicará certamente aprendizagens mútuas.

Passar de uma laicidade da incompetência a uma laicidade da inteligência

Por um lado, a sociedade, e recorro a categorias apresentadas por Régis Debray num relatório elaborado em 2002 para o ministro da educação francês, deve passar de uma laicidade da incompetência – que postula o não interesse pela dimensão religiosa, o que a impede de verdadeiramente compreender a totalidade da aventura humana – para uma laicidade da inteligência – que se preocupa em compreender e ter presente a dimensão religiosa com ela entrando em diálogo, na procura das melhores soluções para a história humana.

Por outro lado, os cristãos, como membros de pleno direito dessa mesma sociedade, devem acreditar que o contributo específico da sua fé só será possível se conseguir dialogar com o mundo de hoje, para o que é necessário ter bem presente o que se passa com as pessoas reconhecendo quais são as suas verdadeiras ânsias e esperanças.

Greve Climática estudantil
Greve Climática estudantil

Inscrever a lógica do Evangelho na vida e na cultura

Sinceramente estou convencido de que é na medida em que for capaz de se mostrar como um modo concreto de existência viável, de deixar transparecer nessa existência a Presença que a habita, de inscrever a lógica do Evangelho no exercício dessa vida e de gerar cultura, que a presença dos cristãos se pode tornar credível. E isto nos sítios onde a vida acontece, onde estão a ser contadas as novas histórias e forjados os novos paradigmas.

A abertura a outras mundividências, sem perder a consciência clara da sua identidade e especificidade; o diálogo a partir de discursos inteligíveis; o compromisso na construção de sociedades democráticas mais maduras; o testemunho de uma esperança capaz de congregar o maior número possível de pessoas na construção de um futuro comum, são também aprendizagens necessárias para que o contributo cristão na construção desse futuro possa ser fecundo.

O que o tempo que vivemos está a pedir aos cristãos não é fácil, nem é pouco, mas essa exigência decorre daquilo que é o específico cristão: a encarnação.

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