A Economia de Francisco: Vivere sine proprio *

* Viver sem Possuir

Desde a sua eleição, no conclave de 2013, o Papa Francisco não perde nenhuma oportunidade para surpreender mulheres e homens, crentes e cidadãos do mundo, colocando na agenda da humanidade temas determinantes para o seu futuro, com grande sentido de oportunidade e urgência.

Cada aceno na janela do Palácio, que não escolheu para viver, mas cria proximidade com os peregrinos presentes na Praça de São Pedro, cada mensagem de Francisco, coloca na agenda problemáticas que todos pressentimos fulcrais para o hoje e o amanhã, mas para as quais não encontramos palavras, nem estratégias que as coloquem em discussão, para encontrar novos horizontes sem nos enredarmos na estreiteza de análises, argumentos e propostas que tantas vezes as caracteriza.

A economia de Francisco é um desses temas, por excelência.

Mas, afinal, a questão não é apenas destes tempos: tem uma vida a inspirá-la, com 800 anos, e um fundamento ainda bem mais longínquo, os Evangelhos, com dois mil anos.

Quando o Papa, no dia 1 de maio de 2019, escreveu uma carta convite aos jovens economistas, empresários e estudantes de economia e de gestão deixou a todos um desafio:

As vossas universidades, as vossas empresas, as vossas organizações são canteiros de esperança para construir outras modalidades de entender a economia e o progresso, para combater a cultura do descarte, para dar voz a quantos não a têm, para propor novos estilos de vida. Enquanto o nosso sistema económico-social ainda produzir uma só vítima e enquanto houver uma só pessoa descartada, não poderá haver a festa da fraternidade universal.

O Papa inspira-se numa forma de vida que continua a questionar a humanidade, a de São Francisco de Assis e a sua regra Vivere sine próprio (Viver sem possuir), que não coloca no centro a propriedade e a posse, mas o dom e o serviço e desafia mulheres e homens de hoje à coragem da desinstalação diante dessa regra franciscana.

Incluir o debate sobre o tema A Economia de Francisco no jubileu de Santo António, significa considerar um dos principais contributos para o pensamento da regra franciscana, também no que diz respeito a novos estilos de vida, que não consideram a economia como um fim absoluto.

Nos seus muitos sermões, Santo António insurge-se contra a usura, denuncia quem faz esperar os pobres e valoriza a “medicina da pobreza” como cura para a “fraqueza do caráter”.

É significativo que este Diálogos com António 2020 tenha sido programado para acontecer no mesmo mês em que iria decorrer, em Assis (de 26 a 28 de março), o evento com o mesmo nome convocado pelo Papa Francisco, reunindo alguns milhares de jovens economistas e empreendedores, provenientes de todo o mundo, para em conjunto proporem um pacto para uma nova economia da solidariedade. O aparecimento inesperado da COVID-19 adiou sucessivamente o evento de Assis que está agora previsto para finais de novembro de 2020.

Na Sala do Capítulo do Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, no mesmo local onde, há 800 anos, Santo António estudou e amadureceu a sua vocação, foram abordados, entre outros, os seguintes temas: uma economia que mata, a falta de acesso a bens essenciais como a educação ou o trabalho digno, a crescente desigualdade na repartição da riqueza, a pobreza extrema de milhões de pessoas, a crise ecológica. Os convidados partilharam connosco as suas diferentes experiências e a sua reflexão sobre os desafios que se colocam à economia mundial, para que esta seja justa, fraterna, sustentável e com um novo protagonismo de quem hoje está excluído.

A palavra de Santo António

O povo amaldiçoado dos usurários tornou-se grande e forte sobre a terra. Os seus dentes são como presas de leões. O leão tem duas características: a nuca inflexível formada de um único osso e a boca malcheirosa. Igualmente inflexível é a nuca do que pratica a usura, pois ele não teme nem a Deus nem aos homens; a sua boca cheira muito mal, pois ele não tem outra coisa na boca a não ser o imundo dinheiro e sua imunda usura. Os seus dentes são como os dos leõezinhos, pois devora os bens dos pobres, dos órfãos e das viúvas.

Sermão do Dom. da Sexagésima

Se por acaso vemos coisas repreensíveis nos pobres, não devemos desprezá-los, porque talvez a medicina da pobreza cure os que a fraqueza do caráter vulnera.

Sermão do I Dom. do Pentecostes

Não é sem grande dor que referimos atitudes de prelados da Igreja e de grandes varões deste século: fazem esperar muito tempo os pobres de Cristo que se demoram a clamar à sua porta e a pedir esmola, com voz embargada pelas lágrimas. Por fim, depois de terem comido bem e talvez, uma vez ou outra, embriagados, mandam dar-lhes alguns restos de sua mesa e as lavaduras da cozinha.

Sermão do Dom. da Ressurreição

A pedido do venerável irmão António, confessor da Ordem dos Frades Menores, para o futuro, nenhum devedor ou fiador poderá ser privado pessoalmente de sua liberdade, quando ele se tornar insolvente. Somente suas posses poderão ser apreendidas neste caso, não porém a sua pessoa e a sua liberdade.

15 de março de 1231, lei do governo de Pádua

Foto da capa: Diálogos com António 2020: A Economia de Francisco. Sala do Capítulo, Mosteiro de Santa Cruz, Coimbra, 3 de março de 2020. Da esquerda para a direita: Paulo Rocha, Teresa Paiva Couceiro, Ricardo Zózimo, Carlos Farinha Rodrigues, Francisco Piedade Vaz.

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