Em grupos de três, as cadeiras estão alinhadas em filas mais ou menos paralelas, todas viradas na mesma direção. Ia escrever, todas para viradas para a frente, mas na verdade não há uma frente óbvia, há só aquela inerente ao arrumar das cadeiras.
As cadeiras estão no meio da sala retangular, à qual se acede por uma meia dúzia de degraus que para certas pessoas são uma barreira difícil, tão difícil de subir, como de descer. Há muitos cartazes afixados com fita cola nas paredes e portas de pladur em volta. São cartazes de fundo branco com pessoas de sorriso eficiente. Há um cartaz com uma mulher de rosto maltratado, sem sorriso, e com muitas nódoas negras. Contra a violência doméstica. Há também várias janelas por onde entra a luz da quase-primavera desta manhã.
Face a face com as cadeiras, há uma secretária e uma máquina dispensadora de senhas. Um segurança fardado de negro com toques de vermelho nos debruns e no emblema da camisa tira dúvidas e controla a entrega das senhas, realizando ambas as tarefas com parcimónia, poupando nas palavras e nos papeis. Aproximamo-nos, explicamos ao que vimos e dizemos o nome. O homem encontra-o na folha branca que tem em cima da secretária e risca-o a direito, com caneta negra apoiada numa régua. Está tudo bem, mas não podemos ter a senha e vamos ter de aguardar.
Sentamo-nos em duas filas consecutivas, já que quase todos os assentos estão ocupados e não há duas cadeiras livres na mesma fila. Os dois virados de lado conversamos sobre assuntos sem importância. Temos um agendamento marcado há duas semanas, não demorou muito a conseguir aqui em Loures, os 10 minutos de atendimento que em Lisboa só teríamos dentro de três meses. Por isso estamos mentalizados para esperar um pouco mais. Se conseguirmos a declaração que vimos pedir tudo terá valido a pena.
A sala de espera da Segurança Social é inusitadamente luminosa. Tem movimento sem rebuliço e, com surpresa, é um lugar silencioso. Não há música de fundo, nem anúncios por altifalante, nem sequer o ruído metálico de uma máquina de ar condicionado antiga. Há apenas os sons da vida numa rua soalheira que entram pela porta aberta. Ou o choro de bebé pequeno que vem detrás de uma das paredes de pladur, gabinete um. Parece mesmo de um bebé pequeno. Penso que é estranho, que é o choro de uma consulta de pediatria e não de um atendimento da Segurança Social. O choro para.
Quem espera sempre alcança
Ouvimos chamar o nosso nome. Levantamo-nos os dois e o segurança entrega uma senha. Conferimos o número com o do ecrã: faltam nove números. Conferimos as horas: faltam nove minutos para a hora agendada. Não faz mal, vimos preparados para esperar.
Aproveito para explicar ao meu amigo estrangeiro que em português temos dois ditados sobre a espera que são muito usados. A ordem pela qual nos socorremos deles é que determina o nosso estado de ânimo: “quem espera desespera” e “quem espera sempre alcança”. Hoje estamos definitivamente centrados em conseguir a declaração e por isso esperar é uma parte do processo de conseguir.
Novo ditado: “quem vai ao ar, perde o lugar” e nós perdemos o nosso, mas com vantagem porque agora nos sentamos lado a lado. O ambiente da sala continua sereno. Algumas pessoas chegam, outras saem. Abre-se a porta do gabinete dois e de lá saem uma senhora muito grávida e uma técnica da Segurança Social; falam em voz amena e rematam o encontro com um até à próxima. Numa das filas de trás, há uma outra senhora grávida que pede ao telefone marcação para vários tratamentos: se conseguisse dar um jeitinho para marcar, fazia tudo antes das 30 semanas, porque depois é mais difícil. A conversa é demorada e exposta, mas acho que ninguém ficou a entender detalhes.
Os nove minutos até à hora passam mais depressa do que os nove números das senhas. Mas não importa. Quem espera há de alcançar. É preciso ir pôr a moedinha, colocar mais dinheiro no parquímetro. Deixa, eu vou lá, o carro está aqui ao lado e se por acaso te chamarem, vais e pedes a declaração que está no documento.
No regresso, ainda uma mudança de lugares. Sim, “quem vai à feira perde a cadeira”.
Atrás de nós, uma voz de mulher, a quem nunca cheguei a pôr rosto. Olha, estou aqui a respirar tranquila. Vou ficar sentada e aguardar. Está muito atrasado, mas estou à espera desta marcação há um mês e aproveito para descansar. Temos de ver o lado positivo de cada situação, não é? Sabes, estou a aproveitar para descansar. Estou a desfrutar do vento, das formigas, vejo as pessoas, umas bem-dispostas, outras nem por isso… Ando sempre a correr, mas para hoje não marquei mais nada. E descanso até ser a minha vez.
Sorrio, porque me identifico. Que disparate, ir descansar para a sala de espera da Segurança Social! Insisto no sorriso e na (auto-)ironia e, apesar de tudo, no descanso.
Desliga a chamada depois de mais algumas palavras e imagino-a a olhar para as formigas (não as vi, não sei se são reais ou metafóricas, ou ambas) e para aquelas pessoas na sala. Olho em volta e vejo-nos ali, brancos, negros, ciganos, portugueses ou estrangeiros (esta informação não se vê, mas tenho-a como objetiva, porque o meu amigo não é português), com ar cool ou betinho, gordos, magros, sozinhos ou acompanhados, novos, velhos, médios, claramente mais mulheres que homens. Como dizia a minha fugaz vizinha: as pessoas, umas bem-dispostas, outras nem por isso.
Os números passam mais vagarosos que os minutos. A porta do gabinete um abre-se e saem três senhoras: uma funcionária, e mãe (avó) e filha (mãe). Um bebé dorme ao colo da senhora mais nova. O bebé é pequeno e não chora. Despedem-se, quase silenciosas. A funcionária tem a mão direita nas costas da jovem mãe e dá-lhe umas festas, um toque humano que consola e ampara, discreto e cúmplice do sorriso com que se despede: Tudo a correr bem. Até à próxima.
Comoveu-me. Pensei que o mundo ignoto dos serviços públicos nem sempre esconde segredos terríveis, mas que também é um lugar de hospitalidade. Pensei na sala de espera da Segurança Social de Loures, numa manhã de quase-primavera, como um clichê dos nossos dias: pessoas, gestos, serviços, espaços, tempos, sons… Quem espera sempre alcança. Saímos com a declaração.