No momento do seu nascimento o ser humano é um projeto aberto a inúmeras possibilidades. O seu destino não está traçado, nem sequer aquilo que lhe é mais próprio, a sua identidade, está definitivamente adquirida. A sua existência, como homem ou mulher, requer uma constante atividade, através da qual vai construindo a sua condição humana. Neste sentido, uma das notas que melhor o caracteriza é a sua permanente condição de aprendiz.
A capacidade de falar, de expressar e de se expressar, constitui uma das características fundamentais da condição humana. O mundo verdadeiramente só se torna o seu mundo à medida que vai sendo capaz de dizê-lo, do mesmo modo que a sua vida se humaniza à medida que vai sendo por ele expressada. A passagem do caos ao cosmos, em todos os níveis da sua existência, só é possível mediante o uso da palavra. De facto, todos sabemos por experiência, que aquilo que, de algum modo, não somos capazes de dizer, nunca chega a ser verdadeiramente assumido e feito nosso.

A existência humana exige, nesta linha, um constante processo de empalavramento, ou dito de outro modo “para o ser humano, só existe o que, directa ou alusivamente, é capaz de expressar, de empalavrar” (Lluis Duch, Notas para una antropologia de la comunicación, in Estaciones del laberinto. Ensayos de antropologia, Herder, Barcelona, 2004, 109).
O facto de falar não é, pois, algo de marginal ou secundário no humano. A sua capacidade linguística e adverbial está, para ele, intimamente relacionada com a qualidade da sua humanidade. Por aquilo que podemos chamar o bom uso da palavra o homem e a mulher podem percorrer o caminho da sua humanização.
Pelo contrário, o caminho da desestruturação é uma realidade que advém a partir do mau uso da palavra. Todo este processo revela uma predisposição responsorial no ser humano, que surge como fazendo parte da sua constituição. O mundo que o rodeia e a sua própria existência, constantemente o interpelam exigindo uma resposta, que pressupõe a sua capacidade para aprender as várias linguagens com que se diz o humano. Só porque pode aprender essas linguagens, pode responder.
Porque falamos, podemos criar caminhos de humanização

Ao longo de todo o percurso da sua existência o ser humano não pode, pois, prescindir da dinâmica que impõe toda a circulação da palavra realizada mediante as diversas transmissões. A competência linguística é coextensiva à sua existência no mundo, devendo ser entendida “como o conjunto de expressividades que se encontram à disposição do homem como aquele ser que pode ser qualificado de falante por excelência” (Lluis Duch, Símbolo y ambigüedad humana, in Estaciones del laberinto, 23, nota 14).
Tudo isto começa no próprio momento do nascimento. É a partir desse preciso momento que começa a progressiva instalação da criança no seu mundo e a construção da sua identidade. Das semânticas cordiais que for desenvolvendo e das competências gramaticais que for adquirindo depende em grande medida o seu futuro.
Da sua capacidade de falar e de ouvir muito depende o rosto, que vai edificando, da sua humanidade. A palavra não é neste sentido, um simples som, imagem ou conceito, um simples conjunto de dicções sem grande incidência na configuração da vida quotidiana, pelo contrário, pela palavra ele vai edificando essa quotidianidade e abrindo-a a todo os horizontes de possibilidade. Para ele falar é viver e a vida do falante, que é por excelência o ser humano no concreto da sua história pessoal, constitui-se essencialmente através das relações responsáveis com os outros ou seja através do diálogo. A construção humana de cada um passa essencialmente por este diálogo, por esta capacidade de falar e ouvir, a partir da qual se vai edificando a si e ao seu mundo.
A importância da palavra e da dicção como elemento distintivo e estruturante do humano é, também, sublinhada no âmbito do religioso. Tanto no campo da oralidade, como no campo da escrita, as religiões têm sido, de facto, intermináveis exercícios com as diversas modalidades da palavra humana.
No princípio era a Palavra (Verbo)

No contexto do cristianismo, por exemplo, a palavra é utilizada para se referir ao próprio mistério de Deus: “no princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1)”. E esta palavra que era no princípio é uma palavra criadora. É por ela que todas as coisas são feitas.
O texto do Génesis testemunha-nos de uma maneira maravilhosa este falar criador de Deus. O caos transforma-se em cosmos através do dizer de Deus: Deus diz e a realidade acontece. O próprio ser humano é uma palavra que Deus diz. E a palavra é também o atributo mais significativo que Deus concede ao ser humano, o qual é criado à sua imagem e semelhança.
O paralelismo é claramente evidente: ele foi criado pela palavra de Deus, mas tem de concretizar diariamente o seu ofício de ser homem e mulher através do contínuo exercício da palavra. Tal como o caos do início se transforma em ordem através da Palavra Criadora, também o ser humano transforma o mundo sem mais, num mundo por ele habitado (mundo humano) através do exercício criador da sua palavra.
António estudioso e ouvinte da Palavra
Foi exatamente este exercício que Fernando Martins de Bulhões (António) fez ao longo da sua vida. Do estudo e da escuta da Palavra – palavra escrita na forma da Sagrada Escritura e Palavra ouvida e intuída no exercício da oração – foi surgindo um diálogo que foi transformando o seu mundo. A partir desse diálogo foi edificando o seu ser homem crente e foi procurando o sentido para a sua existência e para a sua ação. Foi mesmo a partir desse diálogo que foi orientando os passos concretos do seu viver.
Foi por causa desse diálogo que se dirigiu, primeiro, ao Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa, onde começa a desenvolver o seu estudo, seguindo, depois, para o Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, onde é ordenado sacerdote e continua a desenvolver o seu trabalho e reflexão.
É também à luz dessa palavra estudada e rezada que Fernando Martins de Bulhões lê e vive, em fevereiro de 1220, a chegada das relíquias dos cinco missionários franciscanos martirizados em Marrocos, tomando a decisão de juntar-se aos franciscanos e de partir para as missões, trocando o mosteiro de Santa Cruz pelo ermitério de santo Antão dos Olivais e assumindo o nome de António.
Essa é a força transformadora e vivificante da Palavra na vida de António. Essa tem também de ser a força vivificante e transformadora da Palavra na vida de todos os cristãos e das suas comunidades. É isso também que queremos celebrar neste Jubileu 2020, onde não lembramos apenas um acontecimento importante do passado, mas queremos sinalizar a força da Palavra na condução da vida e na construção do mundo.
“O texto do Génesis testemunha-nos de uma maneira maravilhosa este falar criador de Deus. O caos transforma-se em cosmos através do dizer de Deus: Deus diz e a realidade acontece”, escreve Fr. Juan Ambrosio. Assim os humanos constroem as suas páginas de vida com ordem, e não na desordem, se a palavra divina as guiar.
Teresa Ferrer Passos
Só uma nota: Juan Ambrosio é teólogo, casado e pai. É nosso irmão na Fé, na Esperança e na Caridade, mas não é Frei. Sonha com “uma Igreja profundamente apaixonada por Deus e pelo ser humano, à maneira de Jesus Cristo e, por isso, uma Igreja totalmente comprometida com a construção do reino de Deus e da história humana. Uma Igreja feliz por isso”.
https://santoantonio.live/author/juan-ambrosio/