O modo como se pensa é o modo exato da verdade que se vive. Habitualmente, pensa-se no modo que falta à verdade, mesmo que de uma forma involuntária. Objetivamente, tal é irrelevante. Os efeitos nefastos sobre a realidade existem independentemente da intenção de quem pensa, de quem age. Um dos modos mais comuns desta mentira pensada e vivida consiste no uso de termos genéricos, que, travestidos de conceitos, anulam o que é próprio da realidade que, assim, menosprezam.

Exemplo claro de tal modo é o uso de expressões como o homem na Bíblia ou a mulher na Bíblia. Ora, quer na Bíblia quer em qualquer outro lugar, material ou cultural, não há homem, não há mulher, há homens e mulheres concretos, que não podem ser adequadamente reduzidos a uma noção, que não devem ser confundidos com uma designação gregária que anula o que, de facto, são: entidades únicas, insubstituíveis e com uma dignidade inavaliável e incambiável.
No real, que não pode ser substituído por coisa alguma, o que encontramos, sempre e desde sempre, são homens e mulheres. Cada um destes entes é uma pessoa e consigo transporta todo um mundo de possibilidades, incluindo a possibilidade de dar sentido ao real, podendo, assim, chamar-lhe mundo. É esta possibilidade e este sentido que correspondem ao que o velho termo logos queria significar. Infinitizado, é o próprio Deus como Espírito.
No seu realismo extremo, a Bíblia é incómoda para formas mais aburguesadas de sentir e de refletir sobre o real. Real que é, de Deus ao mais ínfimo ser, o tema do Livro Sagrado.
Deste real, nu, cru e duro, mas também, por vezes, muito belo, faz parte um notabilíssimo conjunto de mulheres. Não encontramos na Bíblia essa coisa falsa que é a Mulher: não se pode, por exemplo, somar algebricamente as mulheres todas da Bíblia e obter um resultado que seja a mulher média lá presente.
Não. O que encontramos no Livro são criaturas humanas femininas feitas da carne que Deus lhes deu para construir o seu ser como entes possivelmente livres. Com a figura de Eva imediatamente se percebe que a importância de isso que tal mulher simboliza é literalmente determinante. É Eva quem dá ouvidos à voz que promete um poder incompatível com a condição finita do ser humano.
Mas este fundamental caso significa também que a primeira mulher incarna, precisamente porque é finita, o desejo infinito de ser. Este desejo pode dirigir-se ao encontro com o criador − e é a própria liberdade que se alcança; mas este desejo pode perverter-se se se dirigir para um outro qualquer fim. É esta a escolha feita. O texto é muito claro: não há salvação sem que esta mulher escolha Deus. Ora, esta mulher, que tem nome e é uma pessoa, não um mero símbolo, significa o poder que cada mulher tem, que cada mulher é como ventre do desejo humano. Este ventre não é, em si mesmo, perverso: o desejo humano é um bem e um dom de possibilidade de aproximação a Deus. Como possibilidade, pode ser bem ou mal usado.
Sem a escolha pelo interdito único, Eva teria tido um infinito de escolhas possível, todas de bem. Eva é infinitamente boa em potência e finitamente má em potência: é o que a árvore interdita significa. Esta mulher, única, na sua realidade antropológica, significa o desejo feito carne humana, isto é, o amor de Deus pela criatura humana como ato fértil de uma humanidade que, por sua vez, se metamorfoseie em desejo de Deus.
Todas as mulheres são isto. Todas. As da Bíblia não são excepção. Por tal, é difícil encontrar no Livro mulheres que sejam anódinas, sem vida. Mesmo no pecado, são fogo de desejo de ser, só que pervertido. Mas o fogo está lá, o mesmo é dizer que Deus está lá.
Quando as mulheres da Bíblia são desejo de bem em ato, então o fogo do espírito arde nelas de forma tal que nada lhes resiste. Do difícil martírio em paciência ao não menos difícil sacrifício em sangue, as mulheres do Livro são apenas superadas por Deus.
O exemplo da pacífica Maria de Nazaré, inabalável perante tudo, cumpre em carne o ato do poder de Deus pela liberdade humana, como a mulher que se diviniza porque sempre diz sim ao bem.
As mulheres na Bíblia são o quente sangue do mundo: em Maria, este quente sangue é mãe do sangue de Cristo. E isto diz tudo.
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