2020: construir a utopia

Já estamos no novo ano de 2020. E como sempre costuma acontecer em todos os inícios, este é o tempo de assumir compromissos arrojados e de apontar para horizontes largos e ousados.

É verdade que este mesmo tempo parece depois encarregar-se de encurtar os horizontes e suavizar os compromissos. E, face a isto, muitos se interrogam sobre a utilidade destas utopias. Face a isto mesmo, não tenho dúvidas em responder inequivocamente: sim, claro que são úteis. Aliás estou mesmo convencido de que sem elas não conseguiríamos ir tão longe quanto, em verdade, vamos conseguindo, se bem que ainda não seja o tão longe quanto necessário.

A utopia, como lugar não totalmente definido e demarcado, permite-nos ir caminhando sempre mais, não nos deixando ficar satisfeitos por pensar que aquele lugar, qualquer que ele seja, já é a terra prometida. 

Apesar disso, é importante que saibamos identificar topos, ou seja, lugares, momentos, tempos, que nos permitam visibilizar melhor o destino a perseguir, a utopia a alcançar.

Esta pequena provocação, com que início este exercício de escrita para o novo ano de 2020, foi despertada em mim pela leitura de um texto de José António Pagola do qual partilho aqui dois excertos (1). Começa assim:

Não podemos esquecer a tentação sempre latente na Igreja, de continuar fazendo o que sempre se tem feito, o que noutros tempos nos serviu para nos sentirmos dominadores e fortes, poderosos e importantes. É simplesmente a tentação de sobreviver sem conversão nem transformação alguma na Igreja. Enquanto tal, na nossa sociedade pós-moderna, Deus vai-se convertendo de maneira acelerada numa palavra sem conteúdo, numa abstração e, muitas vezes, numa má recordação a esquecer para sempre. Despertar hoje, entre nós, uma “Igreja em saída” só será possível com a reflexão lúcida e responsável dos teólogos e teólogas e, sobretudo, com a ação criativa e responsável dos pastores das comunidades cristãs.

José Antonio Pagola: Salir hoy a la sociedad para promover la ‘experiencia mística’ y el ‘compromiso político’,
in https://www.religiondigital.org

E eu atrevo-me a acrescentar, sublinhando e destacando, que o sobretudo não se refere apenas aos pastores das comunidades cristãs, mas às comunidades no seu todo e com todos os seus membros. 

A morte de Deus

E o autor continua referindo-se a Johann-Baptist Metz, teólogo recentemente falecido.

O teólogo alemão J.B. Metz considera a ‘crise de Deus’ como o ‘acontecimento nuclear’ que está a repercutir na configuração do ser humano dos nossos tempos. Esta ‘morte de Deus’ na consciência humana não é uma boa notícia para ninguém, pois está arrastando a humanidade para o ‘niilismo’ que alguns consideram ser a ‘definição da nossa época’. A razão é clara. O filósofo maiorquino G. Amengual resume-a de maneira brilhante: “Com a morte de Deus não se indica só a desaparição da ideia de Deus e a metafisica nela fundada, mas também a desaparição de toda a tentativa de dar coerência e sentido, fundamento e finalidade, meta e ideais: o derrubamento de todos os princípios e valores supremos.” 

José Antonio Pagola: Salir hoy a la sociedad para promover la ‘experiencia mística’ y el ‘compromiso político’,
in https://www.religiondigital.org

Os excertos que partilho, sei-o bem, não são de leitura fácil. E digo isto, não só porque aquilo a que se referem é complexo e dificilmente pode ser dito de uma maneira muito simples sem correr o risco de se tornar simplista e, portanto, desajustado da realidade, como também, porque apontam desafios muito importantes e inadiáveis para a comunidade cristã, desafios que desinstalam e não nos podem deixar indiferentes.

Uma nova maneira de falar de Deus

Desenhos de Agustín de la Torre Zarazaga | https://www.agustindelatorre.com. Tradução dos balões de fala: a Redação.
Desenhos de Agustín de la Torre Zarazaga | https://www.agustindelatorre.com. Tradução dos balões de fala: a Redação.

Renovar as comunidades cristãs, através de uma ação criativa e responsável no sentido de se configurarem como Igreja em saída, tem de ser um dos topos da utopia que não podemos deixar de perseguir. Outro desses topos tem de ser também o exercício de uma nova maneira de falar de Deus, com uma linguagem que destaque, de modo claro e inequívoco, a boa notícia que ele quer ser para os homens e mulheres do nosso tempo.

Um Deus que está a convidar à construção de um futuro diferente, onde saibamos promover a fraternidade humana. Um Deus que está a exigir daqueles que nele acreditam o compromisso do cuidado com todos, especialmente com os mais frágeis e necessitados. Um Deus que não está preocupado e centrado em si, porque é um Deus para nós e connosco.

Foi isso mesmo que acabámos de celebrar no Natal. E é precisamente nesse acontecimento que podemos encontrar o impulso indispensável para prosseguir, neste ano de 2020, a construção da utopia a que somos convocados.

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