Adelaide Miranda e Rui Pedro Vasconcelos
Os verbos da salvação: MEDITAR
2. Uma boa notícia dirigida a todos
Um verbo que sempre se fez presente na tradição da Igreja e, nas últimas décadas, também na investigação científica e nas revistas da moda. E, ao mesmo tempo, um verbo que nos parece distante, reservado a uns poucos. Afinal, meditar não faz parte do dia-a-dia do cristão?

A presença de Deus em nós não é uma realidade teórica. O Novo Testamento é percorrido pela boa notícia de que, na Ressurreição de Jesus, o véu do templo que separava a humanidade do Santo dos Santos se rasgou de alto a baixo, abrindo o acesso à comunhão divina.
A presença de Deus no nosso ser mais profundo é uma presença de Amor, pois Deus é Amor (1 Jo 4, 5). Tal significa que o mistério de Deus que nos habita e atravessa não se confunde com as vozes que levamos dentro de nós, vozes de medo, de juízo, de remorso, de sermos traídos na nossa confiança. A presença vivificante de Deus torna-se uma energia vivificante, renovadora, sanadora, capaz de iluminar com a luz pascal as escuridões dos nossos sepulcros. Tal é o mistério de fé que subjaz na difícil e bela arte da meditação cristã.
Trata-se de uma fé que não se demonstra ou impõe, como também não se assume fácil ou rapidamente com um entusiasmo ou uma adesão fugazes.
No seu coração vive um paradoxo não comum com a nossa mentalidade habitual, um paradoxo que nos leva a estranhar ou a rejeitar como inútil ou absurdo o gesto de dedicar uns minutos ao silêncio, à leitura orante atenta de uma passagem dos Evangelhos ou à recitação de um salmo… O mistério da oração pode estar adormecido em nós devido à falta de uma iniciação ou do exemplo de uma testemunha com experiência. Mas está adormecido, não ausente, graças ao batismo como união com o Ressuscitado.
E nunca é tarde para nele adentrarmos: os trabalhadores da vinha, independentemente da hora a que chegam, têm, na parábola evangélica, à sua espera o mesmo dom, o único dom.
Quando falamos da difícil e quotidiana tarefa de meditar, a primeira dificuldade que costumamos referir é a da falta de tempo, dos ritmos exigentes da nossa vida e das constantes preocupações. Mas pode nem ser este o principal obstáculo. A um nível mais profundo e interior, talvez inconsciente, pode habitar em nós a convicção de que não somos dignos, não somos chamados a essa vocação. Ao invés, o nosso lugar seria na escuta do ensinamento de Jesus e da sua moral, na admiração dos seus milagres e sinais – relatos longínquos de um tempo outro, da noite ou da infância dos tempos – e no assistir à sua entrada em Jerusalém. Esquecemo-nos de que o Espírito do Ressuscitado a todos é derramado, no batismo e na emergência de uma vida de escuta da Palavra e de busca do rosto de Deus.
Um testemunho vindo do Oriente Cristão: a Oração de Jesus
Entrei numa igreja e fui à missa orar. Estavam a ler uma das passagens da Epístola do Apóstolo aos Tessalonicenses, que dizia: “Orai sem cessar” (1Ts 5, 17). Estas palavras fixaram-se no meu cérebro e comecei a pensar: como podemos nós orar sem cessar, se precisamos de ter outras ocupações para assegurarmos a nossa sobrevivência?
Relatos de um Peregrino Russo
Do Oriente cristão vem-nos uma sabedoria milenar que transporta a arte da meditação para o coração da vida evangélica. Trata-se da chamada Oração de Jesus, também conhecida como Oração do Coração. Esta tradição é-nos dada a conhecer fundamentalmente através de duas obras já publicadas em Portugal: os Relatos de um Peregrino Russo e a Filocalia, que significa “amor da beleza”. A Filocalia é uma coleção de textos, organizada no século XVII, que reúne ensinamentos sobre a Oração do Coração desde os primeiros séculos do cristianismo, a partir do chamado pai dos monges do deserto, Santo Antão. Os Relatos surgiram no século XIX, no contexto da Rússia rural, e rapidamente tiveram uma grande difusão.
“A oração, por si própria, passava para o coração, isto é, o coração no seu próprio ritmo, lá no seu interior, começou como que a dizer as palavras da oração” (Relatos, p. 49). A Oração de Jesus consiste na repetição, interior e silenciosa, de uma fórmula evangélica; a mais comum é a prece que o Cego de Jericó dirige a Jesus, gritando-a e repetindo-a apesar das ordens para se calar: “Jesus, Filho de David, tem misericórdia de mim!” (Lc 18, 38). A fórmula pode ter sensíveis variações, consistindo sempre em breves e diretas fórmulas bíblicas (o correspondente ao mantra da tradição sankritt indiana). A constante repetição desta fórmula ao longo do dia, no meio das múltiplas tarefas e atividades, corresponde à procura da “oração permanente”. Ao final de um certo tempo e com o acompanhamento de um mestre espiritual, a repetição da fórmula torna-se algo que transita da consciência mental para algo inconsciente, do coração.
Oriunda dos primeiros monges do deserto, a tradição da Oração de Jesus permaneceu nos grandes mosteiros do Sinai e do Monte Atos (Grécia), até ter adquirido grande popularidade no mundo ortodoxo do século XIX. Trata-se de uma tradição que foi ao encontro da piedade popular, dos grupos de devotos com menos formação, pela sua simplicidade. No seu interior reside uma beleza imensurável.
Esta tradição cristã secular de meditação encontra uma inspiração fundamental na figura evangélica de um cobrador de impostos, alguém que seria considerado hoje, no mínimo, como um “não-praticante”, por contraponto ao fariseu (Lc 18, 9-14).
A oração do fariseu é prolixa em palavras, numa aparente ação de graças cujo sentido é pervertido, pois realça uma ilusória bondade pessoal e não os dons e graças recebidos de Deus. A oração do publicano sintetiza-se numa breve fórmula: “Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador”. Uma fórmula que quase acompanha, podemos imaginar, o ritmo da respiração: “Ó Deus, tem piedade de mim… que sou pecador”.
Não há espaço nem lugar para extensas reflexões sobre o mistério divino, sobre as normas e objetivos morais a alcançar, sobre as possíveis razões e justificações dos comportamentos que tivemos. Diante de Deus não há necessidade – como poderá haver diante dos que nos são próximos – de nos justificarmos. A justiça vem de Deus, é a grande proclamação de Paulo. A tradição da Oração de Jesus verá nesta fórmula, breve e densa, o segredo para a meditação. Mas há espaço para que o crente – preferencialmente em diálogo com alguém mais experiente – encontre outra fórmula que o ajude a fazer “passar” a meditação da mente para o coração, dos pensamentos para a respiração. “Abbá, Pai”, “Maranathá, vem Senhor Jesus” ou “Senhor, socorrei-me e salvai-me” são alguns exemplos entre os vários que a história nos oferece.
É no acolhimento de um perdão e de uma graça que esta fórmula ecoa do nosso íntimo. Por detrás está a descoberta de que em Deus está uma permanente e inesgotável fonte de graça, derramada em nós na Ressurreição de Jesus. Poderá estar, também, a experiência de uma história marcada pelo sofrimento e pela angústia.
A oração do publicano é uma oração de agradecimento, também: Deus tem piedade, Deus debruça-se como o Samaritano junto do Homem ferido à beira da estrada. No silêncio e na gratuidade da meditação, na recitação desta ou de outra fórmula ou na brevidade de uma prece, condensa-se a história da salvação, na qual somos envolvidos como num ventre materno. À luz da fé, tal não consiste numa ilusão. A meditação é a consciência, em todo o nosso ser, desta boa-notícia.
“Deus, que vê o oculto, te recompensará” (Mt 6, 5-8)
A tradição bíblica conhece a oração comunitária, expressa em lugares, palavras e símbolos como o templo, a sinagoga ou os salmos. É no contexto da liturgia que se escutam e aprofundam as Escrituras, como o próprio Jesus fez (Lc 4, 16-21). No entanto, a participação na liturgia pode tornar-se apenas um ritualismo ou uma distante devoção ou pertença social, ausentes do dia-a-dia, se não caminhar com uma vida de oração pessoal.

Pode até acontecer – como pudemos experimentar recentemente – não encontrar a possibilidade de celebrar ou rezar em comunidade; se não existir um caminho de oração pessoal, torna-se mais difícil para o crente reconhecer, agradecer e frutificar os sinais do Espírito sempre presentes na nossa vida.
O hábito e os passos da meditação cristã dão-se sempre no quarto mais íntimo e pessoal do crente.
Pedem um ambiente de silêncio e atenção, desligado dos estímulos tecnológicos, durante os minutos que a pessoa se concede. Há uma pausa nas tarefas. Reconhece-se a presença de Deus, uma presença que não é de controlo, de julgamento ou de condenação – não confundir com o nosso superego! Não se trata de buscar sensações, emoções ou intuições: se surgirem, tudo bem, mas se não surgirem, tudo bem também! Aliás, o mais provável é que não surjam. Também não haverá resultados, sejam comuns ou extraordinários, como mudanças espetaculares na maneira de ser e de agir. Trata-se de um espaço e de um tempo que só Deus vê.
Não obstante ser um momento pessoal, a meditação abre-se necessariamente àqueles com quem convivemos ou a quem temos presentes. Pode ter lugar, neste espaço, uma prece por alguém, o recordar com gratidão um encontro passado ou o pedido de perdão, seja do outro, seja da nossa parte. “Rezai uns pelos outros, para vossa salvação” (Tg 5, 16).
Uma pessoa já nonagenária, fiel à oração quotidiana do terço feita de um modo pausado e meditativo, partilhava que, na oração, se recordava todos os dias dos seus entes queridos, filhos, netos e bisnetos (sobretudo das suas dificuldades), e de todos aqueles que já partiram para a casa do Pai.
A meditação tem lugar também na atenção aos pensamentos e sentimentos.
Os monges ortodoxos da tradição da Oração de Jesus falam frequentemente da guarda do coração, para que nele não entrem a tristeza, o ressentimento, o desânimo ou o medo (ou, pelo menos, nele não permaneçam).
Num momento de oração e silêncio, a nossa mente povoar-se-á de pensamentos, desde as tarefas a cumprir até ao vizinho que não controla os seus animais domésticos. Tudo isso faz parte. Não deixemos que tais preocupações nos afastem da nossa meditação, e regressemos à nossa fórmula.
Finalmente, a meditação desenrola-se também durante toda a jornada, na atenção ao que estamos a viver. A distração e uma mentalidade de “quanto mais melhor” levam-nos a desempenhar as nossas tarefas em constante stress. Uma atitude meditativa, guiada pela fórmula ou por uma breve passagem evangélica, pode ajudar-nos a viver com mais atenção e serenidade o que nos é pedido fazer.
Pistas e sugestões

A tradição cristã é riquíssima e pluriforme quanto aos caminhos de oração pessoal. A liturgia – os sacramentos, a liturgia das horas, as celebrações comunitárias – criam uma matriz, um apoio e um sustento na vida do batizado. Os caminhos que este encontra para a sua oração pessoal dependem muito da sua história pessoal, da cultura, da iniciação religiosa que recebeu.
Habitualmente falamos de meditação como uma atividade em si, ao lado de outras práticas. Tal é o caminho da Oração de Jesus, que pede tempos próprios – cerca de dez a vinte minutos, duas vezes por dia – para a busca do silêncio e da paz de coração através da recitação da fórmula. Há grupos organizados que podem ajudar neste caminho. Mas é possível também falar de uma atitude meditativa em outras práticas de oração para os quais o crente se inclina, ou seja, viver essas práticas no espírito da atenção, do silêncio e do encontro.
A oração do terço pertence ao nosso património espiritual, constituindo um apoio e um sentido para tantas gerações que viveram tempos de dificuldades que hoje nos parecem inacreditáveis: fome, trabalho extremo, doença. A lenta e silenciosa repetição da Avé-maria, sem a preocupação da pressa, pode introduzir a mente e o coração na presença real e discreta do Senhor, na mediação da sua Mãe. Também a entrada numa igreja ou capela (hoje, infelizmente, sempre encerradas), a visita ao Santíssimo, podem ser o sinal desta vivência orante.
O encontro diário com as Escrituras, sobretudo os Evangelhos, é uma fonte de beleza e de sentido. Pode-se seguir a liturgia diária da Igreja, através dos subsídios publicados, ou optar pela leitura contínua do Novo Testamento, com breves passagens. A leitura e o acolhimento da Palavra, na Igreja, não está reservada a uma elite de especialistas: Jesus proclamou o Sermão da Montanha e as parábolas a todos os que O escutavam, e Paulo escreveu as suas cartas aos soldados, escravos, padeiros e comerciantes das comunidades cristãs que formou ou visitou, em Roma, Éfeso ou Corinto. A leitura meditativa de uma passagem evangélica, num momento de silêncio e solidão, abre-nos a uma presença viva, e pode reter-nos nos lábios e na memória breves fórmulas a rezar, mesmo que por vezes o seu sentido não seja óbvio – poderá sê-lo mais tarde. Também a leitura meditada de um salmo, com as suas preces tão próximas das nossas, pode ser um precioso auxílio.
Seja qual for a prática (ou práticas) da meditação, são importantes os critérios da fidelidade diária, do silêncio liberto de estímulos, da pausa nas tarefas, do caráter pessoal e oculto (ainda que, pontual ou regularmente, no espaço de um grupo orante). Também o corpo faz parte da oração, numa posição estável, num lento caminhar pela natureza ou nos gestos do orante.
Em qualquer prática, a oração do Pai-nosso, com toda a carga simbólica de ter sido ensinada pelo Senhor, pode, rezada lenta e sentidamente, iniciar ou concluir o momento meditativo. E não esperar pelo extraordinário, pelos resultados, pelas mudanças ou pelas graças concedidas, nem desanimar com as dificuldades ou os sentimentos de inutilidade e de vazio: aí reside a vigilância, na paciência, confiança e esperança, como o servo que, de noite, espera pela aurora da chegada do seu Senhor…
Foto da capa: Os verbos da salvação 4 MEDITAR | Deserto-Saudade, Enrique Mirones, Mosteiro de Santa Maria de Sobrado, Galiza
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